quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Anabela Borges

OURO ENVELHECIDO
Porque estás sentada nos braços da solidão,
e as tuas horas são feitas de silêncios, 
e querias ter a casa preenchida
de vidas que foram tão tuas,
e das tarefas infindas
que te enchiam os dias. 
Querias. 
Porque querias percorrer as ruas 
com o ânimo renovado 
no regresso a casa. 
E querias que as presenças 
que não te esperam mais 
te curassem as feridas, 
as fendas que se abriram em ti,
como as que o tempo abre na terra.
Dizem que tens a idade maior,
que é feita de ouro.
Será. Mas é de um ouro envelhecido,
como o ouro das arrecadas,
que guardas apertadas nas mãos,
sinal da tua passagem, outrora,
passado apagado pelo vento que passa,
de mão em mão.
E já nada brilha como o ouro novo, agora.
Querias.
Mas como pode parecer tão simples
o que querias?
Pássaros que era costume esperarem-te
de bicos abertos no ninho?
Memórias. São memórias,
uma seita de memórias embrulhadas em bruma
e com um cheiro escarninho, acre e doce do que foste feita.
Não consegues lembrar-te do dia
em que a casa ficou vazia,
e tudo se degradou, até quase se desmoronar,
porque todos os pássaros foram voando
para longe de ti, até deixarem de regressar.
E tu ficaste, ouro envelhecido,
empoeirado de branco como os teus cabelos,
dependurada de ti, nesse silêncio enevoado,
com uma pergunta nos olhos
e um fio de lágrima que desce lento,
como a água de um ribeiro
que seja estreito de leito.
Ficas, nessa delonga,
dependurada por um fio,
para seres apenas sombra.
ANABELA BORGES, in ENTRE O SONO E O SONHO-Vol. IV- (Chiado Editora, 2013)

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