MARIA DO ROSÁRIO
PEDREIRA, in A CASA E O CHEIRO DOS LIVROS (Quetzal, 1996)
O verão deixa-me os olhos mais lentos sobre os
livros.
As tardes vão-se repetindo no terraço, onde as
palavras
são pequenos lugares de memória. Estou divorciada
dos
outros pelo tempo destas entrelinhas - longe
de casa,
tenho sonhos que não conto a ninguém, viro devagar
a primeira página: em fevereiro ainda faziam amor
à sexta-feira. De manhã, ela torrava pão e espremia
laranjas numa cozinha fria. Havia mais toalhas para
lavar
ao domingo, cabelos curtos colados teimosamente ao
espelho.
Às vezes, chovia e ambos liam o jornal, dentro do
carro,
antes de se despedirem. Às vezes, repartiam
sofregamente
a infância, postais antigos, o silêncio - nada
aconteceu entretanto. Regresso, pois, à primeira
linha,
à verdade que remexe entre as minhas mãos. Talvez
os olhos
estivessem apenas desatentos sobre o livro; talvez
as histórias
se repitam mesmo, como as tardes passadas no
terraço, longe
de casa. Aqui tenho sonhos que não conto a ninguém.
Têmpera s/ papel: Woman reading, por Vasile Ion
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