quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Tenho

tenho
uma saudade imensa
não sei de quê

olho o céu muito azul
neste dia de inverno
um pouco frio
e sinto saudade

não tenho paciência
para cartas formais
contas bancárias
tratar de ficheiros
ordenar papéis
negociar

quero criar
imaginar
escrever e desenhar
mas o quê?

tenho
uma saudade imensa
de criação

Alf. Jan. / 2015


quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

A função do coração


Paula Amaro


DO QUE EU GOSTO
Gosto de flores e pessoas verdadeiras.
Gosto do ar puro, da sede dos teus lábios,
da água que em bátegas inteiras
cai, em flocos de neve, brancos, pálidos.
Gosto do sabor acre das ameixas verdes,
do mel de rosmaninho, filtrado da colmeia; 
das ilhas de musgo que cobrem as paredes, 
do uivar do lobo quando há lua cheia
Gosto do jasmim plantado no canteiro 
por baixo da janela do meu quarto, 
do sibilar do vento na palha de centeio 
e daquela réstea de luz que vem do alto,
que brilha nos teus olhos cor do céu,
que traz de novo meu peito apertadinho 
e até a névoa que cobre a lua como um véu
deixando livre o amor no meu caminho...
Gosto de flores e pessoas verdadeiras.
E não encontro as pessoas...
PAULA AMARO (a publicar)




Anabela Borges

OURO ENVELHECIDO
Porque estás sentada nos braços da solidão,
e as tuas horas são feitas de silêncios, 
e querias ter a casa preenchida
de vidas que foram tão tuas,
e das tarefas infindas
que te enchiam os dias. 
Querias. 
Porque querias percorrer as ruas 
com o ânimo renovado 
no regresso a casa. 
E querias que as presenças 
que não te esperam mais 
te curassem as feridas, 
as fendas que se abriram em ti,
como as que o tempo abre na terra.
Dizem que tens a idade maior,
que é feita de ouro.
Será. Mas é de um ouro envelhecido,
como o ouro das arrecadas,
que guardas apertadas nas mãos,
sinal da tua passagem, outrora,
passado apagado pelo vento que passa,
de mão em mão.
E já nada brilha como o ouro novo, agora.
Querias.
Mas como pode parecer tão simples
o que querias?
Pássaros que era costume esperarem-te
de bicos abertos no ninho?
Memórias. São memórias,
uma seita de memórias embrulhadas em bruma
e com um cheiro escarninho, acre e doce do que foste feita.
Não consegues lembrar-te do dia
em que a casa ficou vazia,
e tudo se degradou, até quase se desmoronar,
porque todos os pássaros foram voando
para longe de ti, até deixarem de regressar.
E tu ficaste, ouro envelhecido,
empoeirado de branco como os teus cabelos,
dependurada de ti, nesse silêncio enevoado,
com uma pergunta nos olhos
e um fio de lágrima que desce lento,
como a água de um ribeiro
que seja estreito de leito.
Ficas, nessa delonga,
dependurada por um fio,
para seres apenas sombra.
ANABELA BORGES, in ENTRE O SONO E O SONHO-Vol. IV- (Chiado Editora, 2013)

António Lobo Antunes

Pachos na testa, terço na mão,
Uma botija, chá de limão,
Zaragatoas, vinho com mel,
Três aspirinas, creme na pele
Grito de medo, chamo a mulher.
Ai Lurdes que vou morrer.
Mede-me a febre, olha-me a goela,
Cala os miúdos, fecha a janela,
Não quero canja, nem a salada,
Ai Lurdes, Lurdes, não vales nada.
Se tu sonhasses como me sinto,
Já vejo a morte nunca te minto,
Já vejo o inferno, chamas, diabos,
Anjos estranhos, cornos e rabos,
Vejo demónios nas suas danças
Tigres sem listras, bodes sem tranças
Choros de coruja, risos de grilo
Ai Lurdes, Lurdes fica comigo
Não é o pingo de uma torneira,
Põe-me a Santinha à cabeceira,
Compõe-me a colcha,
Fala ao prior,
Pousa o Jesus no cobertor.
Chama o Doutor, passa a chamada,
Ai Lurdes, Lurdes nem dás por nada.
Faz-me tisana e pão de ló,
Não te levantes que fico só,
Aqui sozinho a apodrecer,
Ai Lurdes, Lurdes que vou morrer.
António Lobo Antunes - (Sátira aos HOMENS quando estão com gripe).

Bases em crochet







Zèlia Barbosa