quinta-feira, 31 de maio de 2018

Maria do Rosário Pedreira


O verão deixa-me os olhos mais lentos sobre os livros.
As tardes vão-se repetindo no terraço, onde as palavras
são pequenos lugares de memória. Estou divorciada dos
outros pelo tempo destas entrelinhas - longe de casa,
tenho sonhos que não conto a ninguém, viro devagar
a primeira página: em fevereiro ainda faziam amor
à sexta-feira. De manhã, ela torrava pão e espremia
laranjas numa cozinha fria. Havia mais toalhas para lavar
ao domingo, cabelos curtos colados teimosamente ao espelho.
Às vezes, chovia e ambos liam o jornal, dentro do carro,
antes de se despedirem. Às vezes, repartiam sofregamente
a infância, postais antigos, o silêncio - nada
aconteceu entretanto. Regresso, pois, à primeira linha,
à verdade que remexe entre as minhas mãos. Talvez os olhos
estivessem apenas desatentos sobre o livro; talvez as histórias
se repitam mesmo, como as tardes passadas no terraço, longe
de casa. Aqui tenho sonhos que não conto a ninguém.
MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in A CASA E O CHEIRO DOS LIVROS (Quetzal, 1996)


                                          Têmpera s/ papel: Woman reading, por Vasile Ion


sexta-feira, 25 de maio de 2018

Maria José Meireles


Hoje

senhor

as rosas

e as margaridas

cabem

humildemente

na mesma tela.



Maria José Meireles                                                   




                Rui Moura Baía - Óleo de rosas e margaridas

Canção para a Minha Mãe

E sem um gesto, sem um não, partias!
Assim a luz eterna se extinguia!
Sem um adeus, sequer, te despedias,
Atraiçoando a fé que nos unia!

Terra lavrada e quente,
Regaço de um poeta criador,
Ias-te embora antes do sol poente,
Triste como semente sem calor!

Ias, resignada, apodrecer
À sombra das roseiras outonais!
Cor da alegria, cântico a nascer,
Trocavas por ciprestes pinheirais!

Miguel Torga, in 'Diário (1946)' 


domingo, 13 de maio de 2018

Maria José Meireles



Lágrimas...
Ele escreveu o poema
e ela musicou-lho.
Ao ouvir a canção
ele chorou
ela chorou
eu chorei
e todos os que choraram
perceberam o momento.
Ela não sabia o que dizer
ele disse não ter palavras.

Maria José Meireles

sábado, 12 de maio de 2018

Walt Whitman


Aproveita o dia 

Aproveita o dia, 
Não deixes que termine sem teres crescido um pouco. 
Sem teres sido feliz, sem teres alimentado teus sonhos. 
Não te deixes vencer pelo desalento.
Não permitas que alguém te negue o direito de expressar-te, que é quase um dever. 
Não abandones tua ânsia de fazer de tua vida algo extraordinário. 
Não deixes de crer que as palavras e as poesias sim podem mudar o mundo. Porque passe o que passar, nossa essência continuará intacta. 
Somos seres humanos cheios de paixão.
A vida é deserto e oásis. Nos derruba, nos lastima, nos ensina, nos converte em protagonistas de nossa própria história. 
Ainda que o vento sopre contra, a poderosa obra continua, tu podes trocar uma estrofe.
Não deixes nunca de sonhar, porque só nos sonhos pode ser livre o homem. 
Não caias no pior dos erros: o silêncio. A maioria vive num silêncio espantoso. 
Não te resignes, e nem fujas. 
Valorize a beleza das coisas simples, se pode fazer poesia bela, sobre as pequenas coisas. 
Não atraiçoes tuas crenças. 
Todos necessitamos de aceitação, mas não podemos remar contra nós mesmos. Isso transforma a vida em um inferno. 
Desfruta o pânico que provoca ter a vida toda a diante. 
Procures vivê-la intensamente sem mediocridades. 
Pensa que em ti está o futuro, e encara a tarefa com orgulho e sem medo. 
Aprendes com quem pode ensinar-te as experiências daqueles que nos precederam. 
Não permitas que a vida se passe sem teres vivido…

Walter Whitman (1819 – 1892) foi um jornalista, ensaísta e poeta americano considerado o “pai do verso livre” e o grande poeta da revolução americana.


domingo, 6 de maio de 2018

José Jorge Letria



QUANDO EU FOR PEQUENO

Quando eu for pequeno, mãe,
quero ouvir de novo a tua voz
na campânula de som dos meus dias
inquietos, apressados, fustigados pelo medo.
Subirás comigo as ruas íngremes
com a certeza dócil de que só o empedrado
e o cansaço da subida
me entregarão ao sossego do sono.

Quando eu for pequeno, mãe,
os teus olhos voltarão a ver
nem que seja o fio do destino
desenhado por uma estrela cadente
no cetim azul das tardes
sobre a baía dos veleiros imaginados.

Quando eu for pequeno, mãe,
nenhum de nós falará da morte,
a não ser para confirmarmos
que ela só vem quando a chamamos
e que os animais fazem um círculo
para sabermos de antemão que vai chegar.

Quando eu for pequeno, mãe,
trarei as papoilas e os búzios
para a tua mesa de tricotar encontros,
e então ficaremos debaixo de um alpendre
a ouvir uma banda a tocar
enquanto o pai ao longe nos acena,
lenço branco na mão com as iniciais bordadas,
anunciando que vai voltar porque eu sou
[pequeno
e a orfandade até nos olhos deixa marcas.


JOSÉ JORGE LETRIA, in O LIVRO BRANCO DA MELANCOLIA (Quetzal, 2001)


terça-feira, 1 de maio de 2018

LauraAlberto


depois do Animal, o homem
depois do homem restará sempre o Animal


observo os primeiros rebentos nas arvores
a natureza cumpre se uma vez mais
os Animais regressam e fazem se ouvir

onde antes era frio e sem côr
agora respeitam se as leis nunca impostas pelo homem
da vida nasce a morte

da morte nasce a vida
fácil


LauraAlberto