domingo, 18 de novembro de 2018

Eugénio de Andrade

PEQUENA ELEGIA DE SETEMBRO
Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.
Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos pousados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de Setembro.
Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
que bosque, ou rio, ou mar?
ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?
Queria falar contigo,
Dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.
Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde os corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?
Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.
EUGÉNIO DE ANDRADE, in CORAÇÃO DO DIA (1958), in POESIA-EUGÉNIO DE ANDRADE (Modo de Ler, 2011)












domingo, 16 de setembro de 2018

LauraAlberto



se ainda que amanhã não encontre em mim forças para sorrir, se a força me faltar e as minhas mãos forem substituídas por outras que não minhas e eu as sentir trémulas 

então quero que saibas que os dentes tenho-os cerrados, as unhas cravam-se na pele da palma das mãos, as pernas fraquejam e tentam ceder à gravidade 

então quero que saibas, que o sangue ainda corre e o coração, esse ainda bate





sexta-feira, 14 de setembro de 2018

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Verde Garrafa





Quantas milhas
quanto tempo
para se saber
escutada
quantas milhas
quantos séculos
para se saber
encantadora.

Maria José Meireles


terça-feira, 31 de julho de 2018

LUANA LUA


DIVISÕES VESTIDAS DE SILÊNCIOS
Percorro vezes sem conta
Este meu chão,
Este chão aos quadrados,
Cheio de passos e passinhos
De quem já foi... Não!,
Que ainda são, os meus passos meninos.

Percorro as divisões vestidas de silêncios e de saudade,
Abro e fecho portas à procura das gargalhadas soltas
Nos dias em que eramos todos criança.

Não foram tantas vezes assim,
O trabalho chamava por mim.

Por isso, talvez, esta procura constante dos sorrisos
Que mais pareciam campainhas no meu olhar...
E olho as minhas mãos tão solitárias de afagos
E os meus braços tão vazios...!

Que os meus olhos se encham de lágrimas,
Caindo nos quadrados com passinhos ainda guardados
De quem me é amor, ainda que em silêncio
Encrostado nas divisões de cor.

Onde os meus anjos irrequietos
Encostaram as suas asas, deixando a energia
Com que tento contrariar a ociosidade do meu abraço
E dar rumo às histórias que este chão me lembra,
Extinguir esta dor lume
E as sombras das paredes em queixume,
Testemunhas das saudades que aqui moram.


LUANA LUA, in VOO ENTRE FACES (Versbrava, Porto, 2016)


Ilustração de ©Yelena Bryksenkova

segunda-feira, 18 de junho de 2018

Maria José Meireles


Dentro
de uma bola
de sabão
lilás
regresso
agora
à sabedoria
do silêncio
que escuta.

Maria José Meireles

sábado, 16 de junho de 2018

Carlos Campos



PREFIRO ACREDITAR

Era noite e eu caminhava
Pela areia e imaginava
Memórias da vida no céu,
E pegadas à beira da água
Que eu contava, admirado.
Seriam passos do passado,
Ou Deus que caminhava ao meu lado?

Era noite e eu recordava
Os dias de sofrimento e mágoa
Em que não encontrei companhia
E a areia só mostrava
O rasto da minha melancolia.
Não via as pegadas de Deus,
Os passos que via eram só meus.

Tinhas-me prometido
Que se tomasse este caminho
Caminharias a meu lado
Mas quando a dor foi maior
E olhei em redor
Mais solitário me senti
E tão solitárias as pegadas que vi.

Prefiro acreditar
Que nos dias de sofrimento e mágoa
Desenhados junto à água
Esses solitários passos
Afinal não eram meus
Eram as pegadas de Deus
Que me carregava nos seus braços.

CARLOS CAMPOS (a partir de uma nota de Quinta-feira, 14 de Abril de 2011 às 21:47) 

quinta-feira, 31 de maio de 2018

Maria do Rosário Pedreira


O verão deixa-me os olhos mais lentos sobre os livros.
As tardes vão-se repetindo no terraço, onde as palavras
são pequenos lugares de memória. Estou divorciada dos
outros pelo tempo destas entrelinhas - longe de casa,
tenho sonhos que não conto a ninguém, viro devagar
a primeira página: em fevereiro ainda faziam amor
à sexta-feira. De manhã, ela torrava pão e espremia
laranjas numa cozinha fria. Havia mais toalhas para lavar
ao domingo, cabelos curtos colados teimosamente ao espelho.
Às vezes, chovia e ambos liam o jornal, dentro do carro,
antes de se despedirem. Às vezes, repartiam sofregamente
a infância, postais antigos, o silêncio - nada
aconteceu entretanto. Regresso, pois, à primeira linha,
à verdade que remexe entre as minhas mãos. Talvez os olhos
estivessem apenas desatentos sobre o livro; talvez as histórias
se repitam mesmo, como as tardes passadas no terraço, longe
de casa. Aqui tenho sonhos que não conto a ninguém.
MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in A CASA E O CHEIRO DOS LIVROS (Quetzal, 1996)


                                          Têmpera s/ papel: Woman reading, por Vasile Ion


sexta-feira, 25 de maio de 2018

Maria José Meireles


Hoje

senhor

as rosas

e as margaridas

cabem

humildemente

na mesma tela.



Maria José Meireles                                                   




                Rui Moura Baía - Óleo de rosas e margaridas

Canção para a Minha Mãe

E sem um gesto, sem um não, partias!
Assim a luz eterna se extinguia!
Sem um adeus, sequer, te despedias,
Atraiçoando a fé que nos unia!

Terra lavrada e quente,
Regaço de um poeta criador,
Ias-te embora antes do sol poente,
Triste como semente sem calor!

Ias, resignada, apodrecer
À sombra das roseiras outonais!
Cor da alegria, cântico a nascer,
Trocavas por ciprestes pinheirais!

Miguel Torga, in 'Diário (1946)' 


domingo, 13 de maio de 2018

Maria José Meireles



Lágrimas...
Ele escreveu o poema
e ela musicou-lho.
Ao ouvir a canção
ele chorou
ela chorou
eu chorei
e todos os que choraram
perceberam o momento.
Ela não sabia o que dizer
ele disse não ter palavras.

Maria José Meireles

sábado, 12 de maio de 2018

Walt Whitman


Aproveita o dia 

Aproveita o dia, 
Não deixes que termine sem teres crescido um pouco. 
Sem teres sido feliz, sem teres alimentado teus sonhos. 
Não te deixes vencer pelo desalento.
Não permitas que alguém te negue o direito de expressar-te, que é quase um dever. 
Não abandones tua ânsia de fazer de tua vida algo extraordinário. 
Não deixes de crer que as palavras e as poesias sim podem mudar o mundo. Porque passe o que passar, nossa essência continuará intacta. 
Somos seres humanos cheios de paixão.
A vida é deserto e oásis. Nos derruba, nos lastima, nos ensina, nos converte em protagonistas de nossa própria história. 
Ainda que o vento sopre contra, a poderosa obra continua, tu podes trocar uma estrofe.
Não deixes nunca de sonhar, porque só nos sonhos pode ser livre o homem. 
Não caias no pior dos erros: o silêncio. A maioria vive num silêncio espantoso. 
Não te resignes, e nem fujas. 
Valorize a beleza das coisas simples, se pode fazer poesia bela, sobre as pequenas coisas. 
Não atraiçoes tuas crenças. 
Todos necessitamos de aceitação, mas não podemos remar contra nós mesmos. Isso transforma a vida em um inferno. 
Desfruta o pânico que provoca ter a vida toda a diante. 
Procures vivê-la intensamente sem mediocridades. 
Pensa que em ti está o futuro, e encara a tarefa com orgulho e sem medo. 
Aprendes com quem pode ensinar-te as experiências daqueles que nos precederam. 
Não permitas que a vida se passe sem teres vivido…

Walter Whitman (1819 – 1892) foi um jornalista, ensaísta e poeta americano considerado o “pai do verso livre” e o grande poeta da revolução americana.


domingo, 6 de maio de 2018

José Jorge Letria



QUANDO EU FOR PEQUENO

Quando eu for pequeno, mãe,
quero ouvir de novo a tua voz
na campânula de som dos meus dias
inquietos, apressados, fustigados pelo medo.
Subirás comigo as ruas íngremes
com a certeza dócil de que só o empedrado
e o cansaço da subida
me entregarão ao sossego do sono.

Quando eu for pequeno, mãe,
os teus olhos voltarão a ver
nem que seja o fio do destino
desenhado por uma estrela cadente
no cetim azul das tardes
sobre a baía dos veleiros imaginados.

Quando eu for pequeno, mãe,
nenhum de nós falará da morte,
a não ser para confirmarmos
que ela só vem quando a chamamos
e que os animais fazem um círculo
para sabermos de antemão que vai chegar.

Quando eu for pequeno, mãe,
trarei as papoilas e os búzios
para a tua mesa de tricotar encontros,
e então ficaremos debaixo de um alpendre
a ouvir uma banda a tocar
enquanto o pai ao longe nos acena,
lenço branco na mão com as iniciais bordadas,
anunciando que vai voltar porque eu sou
[pequeno
e a orfandade até nos olhos deixa marcas.


JOSÉ JORGE LETRIA, in O LIVRO BRANCO DA MELANCOLIA (Quetzal, 2001)


terça-feira, 1 de maio de 2018

LauraAlberto


depois do Animal, o homem
depois do homem restará sempre o Animal


observo os primeiros rebentos nas arvores
a natureza cumpre se uma vez mais
os Animais regressam e fazem se ouvir

onde antes era frio e sem côr
agora respeitam se as leis nunca impostas pelo homem
da vida nasce a morte

da morte nasce a vida
fácil


LauraAlberto


sábado, 28 de abril de 2018

Maria João Cantinho



UM RIO, UM NOME

Na terra de meu pai corria um rio
e não era ainda o do tempo
nem eu nadara no múltiplo leito de Heraclito,
era um rio de claros seixos,
onde a sombra e o riso
acolhiam o nosso corpo
ainda intacto
no incêndio da manhã.
.
Na terra do meu pai havia laranjas
e chão, havia sol e murmúrios
e nós ouvíamos a respiração da noite 
por dentro das raízes das árvores
e o rio falava com as pedras
e com a luz
e nó corríamos
ou éramos levados pelo vento
que acendia a folhagem.
.
Na terra do meu pai não havia medo
só um rio e as águas limpas
onde as mulheres lavavam a roupa
e cantavam ao som da terra.
.
Na terra do meu pai corria um rio
e os homens tinham lugar
era um rio por coração
era um nome
para um homem.


sexta-feira, 27 de abril de 2018

Rosa Lobato Faria


Um dia virá
em que a minha porta
permanecerá fechada
em que não atenderei o telefone
em que não perguntarei
se querem comer alguma coisa
em que não recomendarei
que levem os casacos
porque a noite se adivinha fresca.
Só nos meus versos poderão encontrar
a minha promessa de amor eterno.
Não chorem; eu não morri
apenas me embriaguei
de luz e de silêncio.

Rosa Lobato Faria



segunda-feira, 23 de abril de 2018

Maria José Meireles












Quis
um dia
morrer
no teu regaço
sem imaginar
que o poderia fazer
tantas vezes
quantas quisesse
renascer.

Maria José Meireles